Confesso que não me lembro se realmente estava ou não com sede, mas sou capaz de apostar que “sair para poder beber água” foi apenas a desculpa usada para escapar da aula um pouco e perambular pela escola. Não me lembro de nenhuma outra vez que tenha feito isso e, sou capaz de apostar que não estava com sede pelo fato de lembrar claramente que me dirigi ao bebedor mais distante da minha sala para poder beber a dita água. Desci quatro andares para isso. Vale dizer que o prédio tinha quatro andares.
Como bom aluno que era, ainda que tenha andado por toda escola, acabei por ir a um bebedor e, mesmo sem sede, bebi. O engraçado é que assim que tinha terminado de beber a água, acabei fazendo outra coisa que também fiz uma única vez. Saindo do bebedor me dirigi à área central do pátio de recreio, e me chamou a atenção o fato de ver duas meninas e um dos funcionários do colégio olhando inquisitivamente para o chão. Eles se encontravam no meio do pátio, em uma área na qual ficavam dois grandes escorregadores feitos de concreto, que acabavam em duas caixas de areia distintas.
Normalmente eu olharia para aquilo e pensaria logo em uma explicação e seguiria meu caminho, mas naquele dia estranho, decidi ir ainda ao encontro daquela pequena reunião.
Lá chegando percebi que todos estavam olhando para uma aranha que o funcionário havia encontrado. As meninas estavam fazendo hora perguntando ao funcionário o que teria acontecido à aranha para ela estar lá, onde ele achava ser o ninho dela, e quaisquer outras perguntas que poderiam livrá-las de alguns outros minutos de aula. Me lembro de ter ficado espantado com o tamanho da aranha, que me parecia ser uma tarântula. Digo isso pois tudo o que eu vi era um tufo de pêlos envolto em gosma. Daí minha opinião.
Depois de satisfazer a minha curiosidade sobre o que motivava a estranha reunião, decidi fazer parte da mesma, buscando interagir com as meninas. Esta era também uma outra ação incomum que naquele dia acabei por tomar. Digo isso pois, como já dito, tinha doze anos, e apenas começava a ter interesse em interagir com seres do sexo feminino. Até então, todas elas eram chatas, complicadas e sem graça.
Lembro-me bem de apenas uma delas. Ela era loira, mas era um loiro escuro, que me parecia extremamente natural e suave. Tinha cabelos curtos, que terminavam arredondando-se para dentro, mais ou menos na metade de seu pescoço. Seu nariz chamava a atenção por ser levemente arredondado na ponta, de maneira que parecia sempre estar desafiando tudo e todos, em uma demonstração constante de orgulho. Seus olhos eram de um verde escuro, ou verde-mel. O formato de seu rosto como um todo era levemente arredondado. Seu queixo era levemente protuberande, e assim como o nariz, parecia desafiar o mundo através de sua mera existência. Ela tinha duas pequenas pintas, uma em cada bochecha, e sua pela era de um bronzeado leve. A outra menina, infelizmente, está confinada em minha memória como nada mais que um extra, um extra que eu imagino ter cabelos longos e morenos, e, tirando tal informação, mostra-se completamente aleatória.
Como as meninas ainda estavam inquirindo o funcionário sobre o que teria ocorrido, resolvi fazer um gracejo quanto a isso. Paulo César Farias havia morrido há pouco tempo, e o nome do médico que estava investigando tal morte, Badan Palhares, me assaltou na mesma hora.
- Chama o Badan Palhares para descobrir o que aconteceu.
A resposta veio imediata, acompanhada de um olhar que era um misto de desprezo e censura.
- Você é sempre tão idiota assim ?
Tais palavras, assim como o referido olhar, partiram da loira. Ela era justamente a menina que eu procurava entreter e parecia-me que eu havia falhado miseravelmente. Minha suspeita foi confirmada quando ela apanhou sua amiga, e limitou-se a mais três palavras, dirigidas à amiga, antes de se retirar do local.
- Vamos embora daqui.
E assim foi. Ambas saíram juntas dirigindo-se de volta à aula, que, comparada com a minha companhia, parecia ser um bom negócio. Limitei-me a trocar algumas poucas palavras randômicas com o funcionário do colégio e decidi voltar para minha aula também.
Vendo a quantidade de atos incomuns que fiz neste pequeno espaço de tempo, não consigo aceitar outra explicação que não a explicação mais chula, batida e porca que o ser humano é capaz de concatenar: o Destino.
Iria encontrar-me de novo com aquela loira não mais do que um ano depois, mas não a reconheceria então. Reconheceria-a só dentro de três ou quatro anos, quando, revisitando tal memória apenas para saborear o passado, descobriria este dia como sendo o dia que pela primeira vez falei com uma das pessoas mais importantes de minha vida.