quarta-feira, março 09, 2011

Mentira

Mentira. A mentira é uma necessidade básica do ser humano. Assim como comida e sono, ela nos mantém vivos.

E não, não sou eu quem está falando isso. Quem está falando isso são seus pais, que sempre te ensinam a falar a verdade, mas quando você a diz te punem. São os mendigos que não tem problema em escutar mentiras clássicas como “Cara, tou sem dinheiro mesmo”, ainda que você tenha algumas moedas à mostra. São seus amigos, que sempre falam “devemos nos encontrar”, quando nem em um encontro acidental vocês têm assunto.

Experimente um dia falar a verdade para qualquer uma dessas pessoas. Conte para seus pais que você não abre mais os e-mails deles pois eles só te mandam coisas que tem vírus. Você é um filho desnaturado. Fale para o mendigo que você não o conhece, não se importa com ele e por isso ele vale para você menos que um chichlete, razão pela qual você não quer dar à ele suas moedas. Você é um ganancioso filho da puta sem coração, e provavelmente vai ter o carro chutado ou pior. Fale para o seu amigo que você tem muita consideração por ele, mas infelizmente a vida afastou vocês dois e hoje você se sente tão confortável próximo dele quanto de um desconhecido no elevador. Você é um cara que não se importa com ninguém e que vai acabar morrendo sozinho.

Repito: A mentira nos mantém vivos. A mentira é o alfaiate do tecido social. Sem mentira não há civilização.

segunda-feira, setembro 01, 2008

Revelação

Sempre me disseram que minha cabeça era privilegiada, que dela sairiam intensas luzes, que estas aqueceriam o mundo quando por ele se espalhassem.

Nunca tive, porém, qualquer confiança nestas afirmações. Digo isso pois não me vejo diferente dos meus iguais. Tirando o fato de um ser mais gordo e outro mais magro, somos praticamente idênticos.

Minha existência foi comum, uma sucessão de pequenos dias e longas noites. Às vezes os dias e as noites pareciam variar em seu tamanho e eu acabava por perder a noção do tempo.
A única coisa que meus inúmeros dias tiveram como constante era a perda. Perda de um vizinho, de um conhecido e às vezes, de um grande amigo.

Em tais momentos eu me refugiava em minha infância, único e breve período de minha vida no qual eu não estava restrito a esta interminável e repetitiva sucessão de dias e noites. Período mágico que incutiu em mim todas as minhas qualidades.

Um dia, que parecia ser igual a outro qualquer, vi-me retirado de meu mundo e travei contato com realidades ásperas e até então desconhecidas.

Embora a dor de tal contato fosse imensa, logo percebi que finalmente, aqueles que me elogiaram estavam corretos. Reagindo a essas novas realidades minha cabeça se transformou em um turbilhão de luzes, que se espalhavam por mim de maneira caótica e incontrolada, em um espetáculo que finalmente dava sentido à toda minha até então desinteressante vida.

Com minha cabeça consumida por tais luzes, sacrifiquei o meu corpo para mantê-las e alimentá-las, tentando a todo custo irradiá-las por todo o mundo, querendo compartilhar o incomparável calor que todo aquele brilho me dava.

Meu único remorso foi não ter conseguido dedicar todo o meu ser a estas luzes e, ainda que me restasse combustível, ter visto elas se apagarem.

Tal remorso tornou-me enegrecido, torto, quebradiço. Ainda assim, saber-me imortalizado pelo calor que dei ao mundo já me basta. Sei muito bem que cumpri minhas obrigações como fósforo.

quarta-feira, junho 18, 2008

Homem de família

Finalmente Astarô deixou ele ir para casa. Claro, como patrão Astarô não saiu de casa no natal, mas obviamente, tudo foi acertado de antemão entre ele e Bartolomeu para que este fizesse o trabalho do chefe naquele dia. Ainda que o patrão nem tivesse saído de casa, Bartolomeu viu-se preso e submetido a ele graças às suas constantes ligações para o escritório. Só depois que Lili confirmou com Astarô que Bartolomeu já tinha acertado todas as pendências é que ele o liberou.

5 horas da tarde. Em um dia normal ele seria liberado às 6, mas era uma ocasião especial. 25 de Dezembro. Agora Bartolomeu tinha apenas que comprar o coelho, deixar Lili em casa e então comemorar com sua família. Sim, normalmente o natal é comemorado no dia 24, mas não, na casa de Bartolomeu prevaleciam as manias da Vaca. Enquanto ia guiando o carro para a casa da velha que ia lhe vender o coelho ia admirando Lili e pensava como a Vaca no passado era semelhante a ela, ao menos em alguns aspectos.

Sem dúvida a Vaca sempre foi recatada, e Lili nunca demonstrou qualquer pudor. Talvez exatamente por isso tenha se casado com a Vaca. Ele sabia que coisas ruins trazem coisas boas, e coisas boas trazem coisas ruins. Na sua primeira transa com a Vaca conheceu finalmente o que era uma mulher frígida. Imediatamente pensou que aquela seria a mãe de seus filhos, afinal, uma transa ruim significa bons filhos. Quanto a Lili, ele às vezes desconfiava se ela não era uma ex-prostituta ou atriz pornô, tamanha sua excitação e gozo. Tinha certeza absoluta e total que um filho com Lili seria uma desgraça completa, não só pelas conseqüências que ele traria, mas como ser humano mesmo.

Ambas eram capazes de simular carinho, sorrir e mentir, daí sua semelhança. Bartolomeu não se enganava, ele sabia muito bem que se a Vaca gostava de alguém era apenas dos seus filhos. O amor dela por Bartolomeu era agora algo folclórico, toda a família sabia dele, assim como os amigos do casal, ninguém, porém, havia visto qualquer rastro material de sua existência. Já com Lili as coisas eram mais simples. Bartolomeu era uma espécie de caça-níquel, com uma alavanca que levantava de tempos em tempos. Lili abaixava a alavanca de Bartolomeu e, dando sorte, ela ganhava alguma coisa que queria.

Chegando à casa da velha quis fazer tudo o mais rápido possível. Escolheu um coelho albino e pagou a velha em dinheiro. Não quis o troco, a velha confundiu a pressa de Bartolomeu por bondade natalina e ele acabou fingindo ser esse o motivo da caridade. Provavelmente aquela velha demoraria uns quinze minutos para pegar seus dezoito reais de troco. Menos de um real por minuto. Pro inferno com a velha.

“Que coelhinho bonitinho ! O pêlo dele é tão fofinho, todo branquinho ! Dá uma vontade de abraçar até esmagar.” Bartolomeu achou engraçada essa frase de Lili. Combinava com ela. Toda no diminutivo. Só não entendia essa parte final, essa lógica doentia que levava Lili a achar que quando se amava algo muito, acabaríamos destruindo-o. “Tá, é isso tudo sim, mas não fica apertando ele muito. Se a Vaca sentir seu cheiro nesse bicho ela vai me encher o saco. Hoje é natal, só quero encher é minha barriga.” “Já te disse que você às vezes é muito babaca ? E eu ? Já pensou como eu vou passar o natal ?” “Sim, com sua mãe e seu pai, assim como meus filhos. Que você ia achar se seu pai te desse um carro com cheiro de amante ?” Lili colocou o coelho no banco de trás e se contentou em acariciá-lo apenas. Dentro de meia hora eles estariam cada um em sua casa. O coelho ficou dentro de uma caixa com furos.

terça-feira, junho 03, 2008

Trocadilhos e masturbação.

Sempre tive um certo amor por trocadilhos. Acho-os divertidos, ainda que geralmente as pessoas os odeiem imediatamente após escutá-los, eu geralmente fico rindo e apreciando o gracejo. Uma outra coisa que sempre me deixa rindo é a expressão "masturbação mental". Ouvi ela pela primeira vez numa aula de física, com o professor falando que após a aplicação de determinada fórmula certo exercício se transformava em pura masturbação mental.

Toda pessoa, quando exprime um trocadilho, no fundo acha que tal trocadilho é engraçado. Ela até pode falar que ele é horrível ou isso e aquilo, mas a partir do momento que ela o fala, o que se tem é a demonstração tácita de que a pessoa sentiu prazer com aquele trocadilho. Falando um trocadilho a pessoa está deixando, com orgulho, que uma coisa que lhe deu prazer venha ao mundo.

Normalmente, a única pessoa que realmente aprecia um trocadilho é a pessoa que o fez. A reação comum das demais pessoas será declarar que tal trocadilho é horrível, nojento, revoltante.

E essa é a maior prova de que o trocadilho é o maior exemplo de masturbação mental.

Assim como o trocadilho o fim da masturbação é a emissão de algo. Não preciso dar maiores detalhes sobre tal emissão. Já o ato em si poderá variar igualmente em ambos os atos. Ambos podem acontecer praticamente por acidente, através da mera lembrança de palavras parecidas no trocadilho, ou através de algumas coçadas um tanto veementes no caso da masturbação. Claro, além destas maneiras acidentais, os atos podem também vir automaticamente, ou até mesmo o ato pode se prolongar indefinidamente, não resultado nem em trocadilho ou porra nenhuma, sendo uma luta tão cansativa que nos leva a desistir e procurar outra coisa para fazer.

Mesmo com tantas semelhanças, o trocadilho realmente se iguala à masturbação quando analisamos o comportamento das pessoas em relação a eles.

Algumas pessoas juram que não conseguem fazer trocadilho algum, e outras garantem que jamais se masturbaram. Claro, essas pessoas não contam as vezes acidentais ou automáticas. Esse puritanismo é um tanto emblemático. É um sinal da força que tem o tabu da masturbação e dos trocadilhos.

Da mesma maneira que uma pessoa que sempre quer falar todos os trocadilhos que passam pela sua cabeça é tida como chata e inconveniente, um moleque que fique abanando a sua mão gosmenta como se ela fosse um troféu será tido como um desequilibrado inconveniente.

Um caderno de trocadilhos é uma idéia tão absurda quanto uma toalha cuja função seja apenas a limpeza pós-masturbação. Com certeza uma pessoa que possuísse qualquer um destes artefatos seria vista com muitas reservas, isso quando não provocar repúdio completo.

De uma maneira ou outra, eu acho que todo este tabu é algo muito gozado. É triste não ter pessoas que compartilhem tal amor. Acho que um dia ainda aparece alguém. Porém, infelizmente, até lá, estou fadado a ficar me divertindo sozinho.

terça-feira, abril 29, 2008

Ela

Eu tinha doze anos e estava na sexta série. Assim como praticamente todos os meus conhecidos, até então eu era um aluno exemplar. Não que fosse estudioso, já que isso jamais fui, mas era o tipo de aluno que não causava nenhum problema maior na vida de meus professores. Minhas maiores traquinagens limitavam-se a ser prejudiciais apenas para mim mesmo, como minha “dificuldade” eterna em fazer os meus deveres de casa. O fato é que durante a aula eu era um bom aluno. Falava pouco e não atrapalhava, quase nunca aborrecia o professor com perguntas ou com pedidos para ir ao banheiro ou para beber água, e no caso, isso é o que interessa.

Confesso que não me lembro se realmente estava ou não com sede, mas sou capaz de apostar que “sair para poder beber água” foi apenas a desculpa usada para escapar da aula um pouco e perambular pela escola. Não me lembro de nenhuma outra vez que tenha feito isso e, sou capaz de apostar que não estava com sede pelo fato de lembrar claramente que me dirigi ao bebedor mais distante da minha sala para poder beber a dita água. Desci quatro andares para isso. Vale dizer que o prédio tinha quatro andares.

Como bom aluno que era, ainda que tenha andado por toda escola, acabei por ir a um bebedor e, mesmo sem sede, bebi. O engraçado é que assim que tinha terminado de beber a água, acabei fazendo outra coisa que também fiz uma única vez. Saindo do bebedor me dirigi à área central do pátio de recreio, e me chamou a atenção o fato de ver duas meninas e um dos funcionários do colégio olhando inquisitivamente para o chão. Eles se encontravam no meio do pátio, em uma área na qual ficavam dois grandes escorregadores feitos de concreto, que acabavam em duas caixas de areia distintas.

Normalmente eu olharia para aquilo e pensaria logo em uma explicação e seguiria meu caminho, mas naquele dia estranho, decidi ir ainda ao encontro daquela pequena reunião.

Lá chegando percebi que todos estavam olhando para uma aranha que o funcionário havia encontrado. As meninas estavam fazendo hora perguntando ao funcionário o que teria acontecido à aranha para ela estar lá, onde ele achava ser o ninho dela, e quaisquer outras perguntas que poderiam livrá-las de alguns outros minutos de aula. Me lembro de ter ficado espantado com o tamanho da aranha, que me parecia ser uma tarântula. Digo isso pois tudo o que eu vi era um tufo de pêlos envolto em gosma. Daí minha opinião.

Depois de satisfazer a minha curiosidade sobre o que motivava a estranha reunião, decidi fazer parte da mesma, buscando interagir com as meninas. Esta era também uma outra ação incomum que naquele dia acabei por tomar. Digo isso pois, como já dito, tinha doze anos, e apenas começava a ter interesse em interagir com seres do sexo feminino. Até então, todas elas eram chatas, complicadas e sem graça.

Lembro-me bem de apenas uma delas. Ela era loira, mas era um loiro escuro, que me parecia extremamente natural e suave. Tinha cabelos curtos, que terminavam arredondando-se para dentro, mais ou menos na metade de seu pescoço. Seu nariz chamava a atenção por ser levemente arredondado na ponta, de maneira que parecia sempre estar desafiando tudo e todos, em uma demonstração constante de orgulho. Seus olhos eram de um verde escuro, ou verde-mel. O formato de seu rosto como um todo era levemente arredondado. Seu queixo era levemente protuberande, e assim como o nariz, parecia desafiar o mundo através de sua mera existência. Ela tinha duas pequenas pintas, uma em cada bochecha, e sua pela era de um bronzeado leve. A outra menina, infelizmente, está confinada em minha memória como nada mais que um extra, um extra que eu imagino ter cabelos longos e morenos, e, tirando tal informação, mostra-se completamente aleatória.

Como as meninas ainda estavam inquirindo o funcionário sobre o que teria ocorrido, resolvi fazer um gracejo quanto a isso. Paulo César Farias havia morrido há pouco tempo, e o nome do médico que estava investigando tal morte, Badan Palhares, me assaltou na mesma hora.

- Chama o Badan Palhares para descobrir o que aconteceu.

A resposta veio imediata, acompanhada de um olhar que era um misto de desprezo e censura.

- Você é sempre tão idiota assim ?

Tais palavras, assim como o referido olhar, partiram da loira. Ela era justamente a menina que eu procurava entreter e parecia-me que eu havia falhado miseravelmente. Minha suspeita foi confirmada quando ela apanhou sua amiga, e limitou-se a mais três palavras, dirigidas à amiga, antes de se retirar do local.

- Vamos embora daqui.

E assim foi. Ambas saíram juntas dirigindo-se de volta à aula, que, comparada com a minha companhia, parecia ser um bom negócio. Limitei-me a trocar algumas poucas palavras randômicas com o funcionário do colégio e decidi voltar para minha aula também.

Vendo a quantidade de atos incomuns que fiz neste pequeno espaço de tempo, não consigo aceitar outra explicação que não a explicação mais chula, batida e porca que o ser humano é capaz de concatenar: o Destino.

Iria encontrar-me de novo com aquela loira não mais do que um ano depois, mas não a reconheceria então. Reconheceria-a só dentro de três ou quatro anos, quando, revisitando tal memória apenas para saborear o passado, descobriria este dia como sendo o dia que pela primeira vez falei com uma das pessoas mais importantes de minha vida.

domingo, abril 27, 2008

O Besouro

Sua primeira reação ao barulho foi tomar um susto. Sua segunda reação, finalmente uma reação consciente, foi se virar para ver o que tinha provocado tal barulho.

Era um besouro. Detestava besouros desde pequeno, quando os via aos montes no sítio da família. Jamais entendeu como eles podiam ser tão abundantes. Devia ser apenas o sítio lhe informando sutilmente que também não gostava quando Ele lá ia, quase sempre uma visita forçada.

Passado o asco inicial, foi tomado de um leve medo. Não que Ele achasse que o besouro lhe pudesse fazer qualquer mal, era apenas o medo de que este tocasse a sua pele. A possibilidade de sentir aquelas pernas desengoçadas e feias, lhe causava tal horror que não duvidou serem elas feitas com o intuito específico de o repelir.

Subitamente o besouro voou, dirigindo-se a uma janela. Ele ficou grato pelo inseto ter voado na direção oposta à sua, e riu-se ao ver o besouro batendo insistentemente contra a janela fechada. Ficou admirado ao ver que o inseto possuía teimosia, característica que lhe era tão cara exatamente por ser ela um dos alicerces de sua masculinidade.

Para Ele, ser teimoso não era um defeito, como todos costumavam lhe falar, não raro através de uma crítica direta. Não, ser teimoso era nada mais do que honrar a própria masculinidade, já que um macho não se dobra. A determinação não era nada mais que uma teimosia que deu certo, e Ele acreditava que com tempo suficiente, toda teimosia acabaria virando determinação.

Outro barulho o tirou de suas divagações. Percebeu novamente que o barulho vinha do besouro. O inseto havia se cansado batendo contra a janela, e após perder sua estabilidade de vôo ao bater em uma das bordas da janela, acabou caindo de costas no chão.

Ao perceber a situação patética na qual se encontrava o inseto, não teve Ele pena, compaixão ou riso. Na verdade enraiveceu-se. Como um bicho estúpido o suficiente para não conseguir, literalmente, se virar poderia estar vivo? Como era possível que uma espécie tão irremediavelmente vulnerável não só ainda existisse, mas também teve a capacidade de se reproduzir o suficiente para ser a protagonista de um de seus traumas de infância? Como Ele, justamente um macho, poderia se assustar e até mesmo temer uma criatura tão lamentavelmente débil?

Enquanto divagava nestas questões, Ele manteve seu olhar fixo no besouro. Este, agora, se limitava a fazer inúmeros movimentos com suas pernas, todos de uma inutilidade completa. Mais correto seria dizer que ele estava se debatendo contra o vazio, realizando nada mais que um pequeno e inapropriado exercício aeróbico.

Enquanto a raiva o consumia, Ele não via apenas um besouro virado se debatendo. O que Ele via eram súplicas do besouro por alguma ajuda, mais especificamente por uma ajuda dele, que poderia salvar o besouro com uma ação que era para Ele, banal. Cada movimento inútil e descordenado daquelas pernas horrorosas era uma súplica, e ele se deliciava com cada uma delas. Ali estava Ele, podendo salvar ou deixar morrer aquele besouro. Porém, para Ele era ainda mais. Aquele besouro específico significava então toda uma espécie, e por conseqüência, todo um trauma de sua infância, que ele poderia aniquilar simplesmente através da inércia, admirando seu objeto de terror enquanto este definhava.

Sim, Ele poderia salvar aquele pobre inseto que nada sabia sobre a culpa de seus semelhantes em ter tornado a infância dele um pouco pior. Mas é claro que não faria isso. Naquele momento, Ele tinha o poder de dar a vida ou dar a morte, e Ele já tinha se decidido. Aquele pedido de perdão de toda uma espécie pelos maus que esta lhe causara anteriormente não bastavam. A única maneira de eliminar o seu trauma completamente era eliminando a razão deste trauma, o seu protagonista. E este protagonista, agora se debelava contra a morte certa, decretada pelo nojo que seu salvador tinha dele, tanto pelo o que ele representava, quanto por sua constituição física.

Enquanto ainda se encontrava inebriado com o poder que tinha sobre o inseto e com as possibilidades que tal poder lhe apresentava de mudar a Ele mesmo, seus olhos presenciaram o impossível: de repente o besouro pôs-se de pé.

Este simples ato de sobrevivência pelo besouro foi encarado por Ele como a maior das ofensas. Como aquele ser destestável pode revogar, com um único movimento, todo o poder que Ele tinha acabado de adquirir não só sobre o inseto em si, mas sobre toda uma espécie e até mesmo sobre seu próprio passado? Como aquele maldito besouro se recusava a dar a própria vida como a indenização justa e devida pelo seu criminoso ato de existir, de ser descendente daqueles que o traumatizaram?

Em uma fração de segundos o besouro havia provado sua independência, mostrado a Ele que jamais havia lhe suplicado coisa alguma, e ainda acabara de provar que sua espécie não era protagonista de um dos seus traumas de infância por acaso. Ele, percebendo que aquele inseto desgraçado se recusava a lhe dar qualquer tributo por crimes do qual era inocente, não mais teve raiva, mas fúria. Não. Ele era um macho, e haveria de acertar as contas com aquele inseto asqueroso.

Levantou-se com um salto e, saindo seus pés do chão logo após ele ter saído da cadeira, certificou-se que o retorno de seus pés ao chão seria amortecido pelo besouro. Ao fazer contato com as costas do inseto, a transferência de peso efetuada por seus pés para o inseto fez com que este inicialmente caísse com sua barriga no chão, devido a falência de suas pernas ante tão desproporcional peso.

Com sua barriga já no chão e suas pernas inutilizadas, o besouro percebeu uma pressão maior em duas diferentes áreas de suas costas, que eram na verdade duas linhas, linhas das ranhuras do sapato daquele que o atacava. Com o aumento da pressão as costas do besouro se partiram em três pedaços aproximadamente iguais, divididos exatamente pelas ranhuras do sapato.

Após o rompimento de suas costas, era chegada a vez dos seus órgãos internos. Devido à relativa uniformidade do contato de sua barriga com o chão, o inseto se mostrava uma plataforma estável para o seu próprio esmagamento pelo sapato. Desta forma, quando as ranhuras do sapato adentraram suas costas, elas agiram como lâminas, que cortavam o seu interior em três pedaços iguais com uma precisão cirúrgica.

Já desfalecendo o inseto percebeu uma terceira ranhura, que se aproximava de sua mandíbula. Com seu corpo já fatiado, o besouro experimentou então a quebra de sua mandíbula pela terceira ranhura, o que impossibilitava agora até mesmo que ele desferisse um insulto final contra seu atacante.

Assim que Ele percebeu que o seu pé estava firmemente posto no chão e que o besouro agora se encontrava espalhado por uma área relativamente vasta, fez ele o último ato daquela sinfonia composta pelos sons do esmagamento e aniquilamento daquela forma de vida. Girou os seus sapatos, como se estivesse girando uma chave, selando o destino do inseto.

A última visão do besouro foi uma luz forte, que era nada mais do que a luz normal, mas o tempo que seus olhos haviam passado embaixo do sapato acabou tornando-os mais sensíveis. A luz só não o cegava graças a uma pequena película protetora que havia se formado sobre seus olhos, que também explicava a coloração levemente amarelada que sua visão estava tendo. Só entendeu que sua cabeça estava mergulhada em suas próprias vísceras no exato momento em que morreu. Nunca entendeu, porém, que a culpa de sua morte era na verdade de sua própria espécie, por ter dado início ao poder divino que o estraçalhou.

domingo, outubro 17, 2004

Doze, meus apóstolos.

Pois bem, hoje, falaremos de Eurico Rogério, terceiro filho dos pombinhos Lycarião.

Antes de mais nada, ressalte-se ser esse meu tio um dos personagens que desfruta das mais variadas opiniões dentro da família. Alguns o amam, outros o detestam, é tido como inteligente, e até mesmo como prepotente. Não fico surpreso quando vejo esse meu incrível tio despertar tantas reações. Afinal, para mim, ele é exatamente a encarnação perfeita do espírito Lycarião, tanto em qualidades como em defeitos.

Para podermos fazer uma esquadrinhação pertinente de tamanho paradoxo, farei uma análise concomitante de suas qualidades e de algum defeito correspondente.

Emocionalmente, Tio Eurico carrega uma imensa ligação com o passado da família, e se orgulha do mesmo, sendo preocupado com a tradição e história da família, o que também o faz ser daqueles que tenta preservá-la ao máximo. Ilustrando isso, devo dizer que fico impressionado quando o vejo falando sobre histórias da família, e fico especialmente admirado vendo-o vivenciar as fotografias dos velhos álbuns de Seu Lyca. Exatamente dessa ligação com o passado e essa busca de preservação, Tio Eurico acaba sendo um familiar frio para aqueles que ingressem na família, na típica atitude de um provinciano desconfiado de um forasteiro. Outro problema que essa busca traz, é que a mesma às vezes acaba por ter uma fúria desmedida, e, tendo a afobação de um bom Lycarião, ela pode se dirigir a algum membro da família que não a merecesse. Digo isso por já ter sido vítima da mesma, depois de uma briga que tive com meu primo Rodolfo. Acreditando piamente nas primeiras notícias que obteve, Tio Eurico convenceu-se logo de ser minha existência dedicada à destruição de minha adorada família. Fico feliz por não ter atentido eu mesmo o telefone aquele dia. Teria sido uma experiência traumática.


Intelectualmente, Tio Eurico carrega a sólida bagagem que tipifica um Lycarião autêntico. De um conhecimento não apenas teórico, mas também prático, esse meu tio é também dotado de uma incrível capacidade de argumentação e de um incrível respeito para uma discussão com uma pessoa de convicções diametralmente opostas. Devo dizer ser esse refinamento uma qualidade um tanto peculiar nele, dentre toda a família. Ao menos, essa foi minha experiência com ele. Sendo ele militar durante o regime de exceção que vigorou de 1964 a 1984, era de se esperar não ter ele muita simpatia por idéias ou personalidades comunistas. Assim, era de se esperar uma reação no mínimo agressiva por parte dele para comigo quando eu apareci ostentando o rosto do Che Guevara em uma camiseta que vestia. Foi surpreendente constatar ser ele o mais calmo e aberto a debate de todos os Lycariões, respeitando minha opinião, sempre combatendo-a, mas com um respeito infindo ! Novamente, a imperfeição que Tio Eurico aqui externa é natural do nome Lycarião. Tem uma cultura sólida e respeitosa, mas um tanto conservadora e eu diria, que até mesmo conformista. Também, quando ele já não tem seu interlocutor em muita boa conta, ele não terá a mínima piedade e simplesmente o demolirá. Lycariões não são famosos por sua paciência.

Historicamente, é um personagem e tanto. Sendo o varão da família que realmente enveredou totalmente pelos caminhos de seu pai, ele se tornou piloto da FAB, e dificilmente consigo pensar em um militar com mais qualidades que ele. Como típico Lycarião, hierarquia e obediência para ele nunca foram problemas, mas até mesmo normas de conduta na vida, o que em muito ajudou sua experiência na caserna. Ao meu ver, tem um dos casamentos mais estáveis de toda a família, sendo que é casado justamente com minha Madrinha, minha querida Tia Mercês, mulher sempre fina e de um trato delicadíssimo. Não sei se felizmente ou infelizmente, mas historicamente Tio Eurico não nos apresenta um defeito, mas sofre uma mácula que costuma atormentar os Lycariões. Mesmo sendo um excelente militar, não teve sua promoção para Brigadeiro na FAB. Tendo aposentado-se como Coronel portanto. Golpes como esse são comuns na família Lycarião. A vida costuma conspirar para lhes dar um injusto golpe no momento mais vil e nas coisas mais cruciais.

No dia a dia, é o típico Lycarião mais do que em qualquer situação. Calmo e pacato, um tanto distante, mas sempre gentil. Porém, sofre do mal que atormenta toda a família quando se sente injustiçado ou quando resolve comprar uma briga. Nesses momentos, os Lycariões esquecem sua maneira controlada de ser e ficam completamente cegos. Perdão é uma palavra expurgada de seus dicionários nessas horas. Tio Eurico, como legítimo e completo Lycarião, quando entra em uma briga, não se rende até se ver esfacelado ou até ver seu inimigo fatiado.

Meus caros, aqui ficamos por hoje. Espero o mais cedo possível retornar para poder falar sobre Wanda Miriam, que teve como rebentos Rodolfo e Priscila. Confesso desde já ter tido um relacionamento conturbado com esse ramo da família. Porém, fico satisfeito por saber ser isso passado.