terça-feira, abril 29, 2008

Ela

Eu tinha doze anos e estava na sexta série. Assim como praticamente todos os meus conhecidos, até então eu era um aluno exemplar. Não que fosse estudioso, já que isso jamais fui, mas era o tipo de aluno que não causava nenhum problema maior na vida de meus professores. Minhas maiores traquinagens limitavam-se a ser prejudiciais apenas para mim mesmo, como minha “dificuldade” eterna em fazer os meus deveres de casa. O fato é que durante a aula eu era um bom aluno. Falava pouco e não atrapalhava, quase nunca aborrecia o professor com perguntas ou com pedidos para ir ao banheiro ou para beber água, e no caso, isso é o que interessa.

Confesso que não me lembro se realmente estava ou não com sede, mas sou capaz de apostar que “sair para poder beber água” foi apenas a desculpa usada para escapar da aula um pouco e perambular pela escola. Não me lembro de nenhuma outra vez que tenha feito isso e, sou capaz de apostar que não estava com sede pelo fato de lembrar claramente que me dirigi ao bebedor mais distante da minha sala para poder beber a dita água. Desci quatro andares para isso. Vale dizer que o prédio tinha quatro andares.

Como bom aluno que era, ainda que tenha andado por toda escola, acabei por ir a um bebedor e, mesmo sem sede, bebi. O engraçado é que assim que tinha terminado de beber a água, acabei fazendo outra coisa que também fiz uma única vez. Saindo do bebedor me dirigi à área central do pátio de recreio, e me chamou a atenção o fato de ver duas meninas e um dos funcionários do colégio olhando inquisitivamente para o chão. Eles se encontravam no meio do pátio, em uma área na qual ficavam dois grandes escorregadores feitos de concreto, que acabavam em duas caixas de areia distintas.

Normalmente eu olharia para aquilo e pensaria logo em uma explicação e seguiria meu caminho, mas naquele dia estranho, decidi ir ainda ao encontro daquela pequena reunião.

Lá chegando percebi que todos estavam olhando para uma aranha que o funcionário havia encontrado. As meninas estavam fazendo hora perguntando ao funcionário o que teria acontecido à aranha para ela estar lá, onde ele achava ser o ninho dela, e quaisquer outras perguntas que poderiam livrá-las de alguns outros minutos de aula. Me lembro de ter ficado espantado com o tamanho da aranha, que me parecia ser uma tarântula. Digo isso pois tudo o que eu vi era um tufo de pêlos envolto em gosma. Daí minha opinião.

Depois de satisfazer a minha curiosidade sobre o que motivava a estranha reunião, decidi fazer parte da mesma, buscando interagir com as meninas. Esta era também uma outra ação incomum que naquele dia acabei por tomar. Digo isso pois, como já dito, tinha doze anos, e apenas começava a ter interesse em interagir com seres do sexo feminino. Até então, todas elas eram chatas, complicadas e sem graça.

Lembro-me bem de apenas uma delas. Ela era loira, mas era um loiro escuro, que me parecia extremamente natural e suave. Tinha cabelos curtos, que terminavam arredondando-se para dentro, mais ou menos na metade de seu pescoço. Seu nariz chamava a atenção por ser levemente arredondado na ponta, de maneira que parecia sempre estar desafiando tudo e todos, em uma demonstração constante de orgulho. Seus olhos eram de um verde escuro, ou verde-mel. O formato de seu rosto como um todo era levemente arredondado. Seu queixo era levemente protuberande, e assim como o nariz, parecia desafiar o mundo através de sua mera existência. Ela tinha duas pequenas pintas, uma em cada bochecha, e sua pela era de um bronzeado leve. A outra menina, infelizmente, está confinada em minha memória como nada mais que um extra, um extra que eu imagino ter cabelos longos e morenos, e, tirando tal informação, mostra-se completamente aleatória.

Como as meninas ainda estavam inquirindo o funcionário sobre o que teria ocorrido, resolvi fazer um gracejo quanto a isso. Paulo César Farias havia morrido há pouco tempo, e o nome do médico que estava investigando tal morte, Badan Palhares, me assaltou na mesma hora.

- Chama o Badan Palhares para descobrir o que aconteceu.

A resposta veio imediata, acompanhada de um olhar que era um misto de desprezo e censura.

- Você é sempre tão idiota assim ?

Tais palavras, assim como o referido olhar, partiram da loira. Ela era justamente a menina que eu procurava entreter e parecia-me que eu havia falhado miseravelmente. Minha suspeita foi confirmada quando ela apanhou sua amiga, e limitou-se a mais três palavras, dirigidas à amiga, antes de se retirar do local.

- Vamos embora daqui.

E assim foi. Ambas saíram juntas dirigindo-se de volta à aula, que, comparada com a minha companhia, parecia ser um bom negócio. Limitei-me a trocar algumas poucas palavras randômicas com o funcionário do colégio e decidi voltar para minha aula também.

Vendo a quantidade de atos incomuns que fiz neste pequeno espaço de tempo, não consigo aceitar outra explicação que não a explicação mais chula, batida e porca que o ser humano é capaz de concatenar: o Destino.

Iria encontrar-me de novo com aquela loira não mais do que um ano depois, mas não a reconheceria então. Reconheceria-a só dentro de três ou quatro anos, quando, revisitando tal memória apenas para saborear o passado, descobriria este dia como sendo o dia que pela primeira vez falei com uma das pessoas mais importantes de minha vida.

domingo, abril 27, 2008

O Besouro

Sua primeira reação ao barulho foi tomar um susto. Sua segunda reação, finalmente uma reação consciente, foi se virar para ver o que tinha provocado tal barulho.

Era um besouro. Detestava besouros desde pequeno, quando os via aos montes no sítio da família. Jamais entendeu como eles podiam ser tão abundantes. Devia ser apenas o sítio lhe informando sutilmente que também não gostava quando Ele lá ia, quase sempre uma visita forçada.

Passado o asco inicial, foi tomado de um leve medo. Não que Ele achasse que o besouro lhe pudesse fazer qualquer mal, era apenas o medo de que este tocasse a sua pele. A possibilidade de sentir aquelas pernas desengoçadas e feias, lhe causava tal horror que não duvidou serem elas feitas com o intuito específico de o repelir.

Subitamente o besouro voou, dirigindo-se a uma janela. Ele ficou grato pelo inseto ter voado na direção oposta à sua, e riu-se ao ver o besouro batendo insistentemente contra a janela fechada. Ficou admirado ao ver que o inseto possuía teimosia, característica que lhe era tão cara exatamente por ser ela um dos alicerces de sua masculinidade.

Para Ele, ser teimoso não era um defeito, como todos costumavam lhe falar, não raro através de uma crítica direta. Não, ser teimoso era nada mais do que honrar a própria masculinidade, já que um macho não se dobra. A determinação não era nada mais que uma teimosia que deu certo, e Ele acreditava que com tempo suficiente, toda teimosia acabaria virando determinação.

Outro barulho o tirou de suas divagações. Percebeu novamente que o barulho vinha do besouro. O inseto havia se cansado batendo contra a janela, e após perder sua estabilidade de vôo ao bater em uma das bordas da janela, acabou caindo de costas no chão.

Ao perceber a situação patética na qual se encontrava o inseto, não teve Ele pena, compaixão ou riso. Na verdade enraiveceu-se. Como um bicho estúpido o suficiente para não conseguir, literalmente, se virar poderia estar vivo? Como era possível que uma espécie tão irremediavelmente vulnerável não só ainda existisse, mas também teve a capacidade de se reproduzir o suficiente para ser a protagonista de um de seus traumas de infância? Como Ele, justamente um macho, poderia se assustar e até mesmo temer uma criatura tão lamentavelmente débil?

Enquanto divagava nestas questões, Ele manteve seu olhar fixo no besouro. Este, agora, se limitava a fazer inúmeros movimentos com suas pernas, todos de uma inutilidade completa. Mais correto seria dizer que ele estava se debatendo contra o vazio, realizando nada mais que um pequeno e inapropriado exercício aeróbico.

Enquanto a raiva o consumia, Ele não via apenas um besouro virado se debatendo. O que Ele via eram súplicas do besouro por alguma ajuda, mais especificamente por uma ajuda dele, que poderia salvar o besouro com uma ação que era para Ele, banal. Cada movimento inútil e descordenado daquelas pernas horrorosas era uma súplica, e ele se deliciava com cada uma delas. Ali estava Ele, podendo salvar ou deixar morrer aquele besouro. Porém, para Ele era ainda mais. Aquele besouro específico significava então toda uma espécie, e por conseqüência, todo um trauma de sua infância, que ele poderia aniquilar simplesmente através da inércia, admirando seu objeto de terror enquanto este definhava.

Sim, Ele poderia salvar aquele pobre inseto que nada sabia sobre a culpa de seus semelhantes em ter tornado a infância dele um pouco pior. Mas é claro que não faria isso. Naquele momento, Ele tinha o poder de dar a vida ou dar a morte, e Ele já tinha se decidido. Aquele pedido de perdão de toda uma espécie pelos maus que esta lhe causara anteriormente não bastavam. A única maneira de eliminar o seu trauma completamente era eliminando a razão deste trauma, o seu protagonista. E este protagonista, agora se debelava contra a morte certa, decretada pelo nojo que seu salvador tinha dele, tanto pelo o que ele representava, quanto por sua constituição física.

Enquanto ainda se encontrava inebriado com o poder que tinha sobre o inseto e com as possibilidades que tal poder lhe apresentava de mudar a Ele mesmo, seus olhos presenciaram o impossível: de repente o besouro pôs-se de pé.

Este simples ato de sobrevivência pelo besouro foi encarado por Ele como a maior das ofensas. Como aquele ser destestável pode revogar, com um único movimento, todo o poder que Ele tinha acabado de adquirir não só sobre o inseto em si, mas sobre toda uma espécie e até mesmo sobre seu próprio passado? Como aquele maldito besouro se recusava a dar a própria vida como a indenização justa e devida pelo seu criminoso ato de existir, de ser descendente daqueles que o traumatizaram?

Em uma fração de segundos o besouro havia provado sua independência, mostrado a Ele que jamais havia lhe suplicado coisa alguma, e ainda acabara de provar que sua espécie não era protagonista de um dos seus traumas de infância por acaso. Ele, percebendo que aquele inseto desgraçado se recusava a lhe dar qualquer tributo por crimes do qual era inocente, não mais teve raiva, mas fúria. Não. Ele era um macho, e haveria de acertar as contas com aquele inseto asqueroso.

Levantou-se com um salto e, saindo seus pés do chão logo após ele ter saído da cadeira, certificou-se que o retorno de seus pés ao chão seria amortecido pelo besouro. Ao fazer contato com as costas do inseto, a transferência de peso efetuada por seus pés para o inseto fez com que este inicialmente caísse com sua barriga no chão, devido a falência de suas pernas ante tão desproporcional peso.

Com sua barriga já no chão e suas pernas inutilizadas, o besouro percebeu uma pressão maior em duas diferentes áreas de suas costas, que eram na verdade duas linhas, linhas das ranhuras do sapato daquele que o atacava. Com o aumento da pressão as costas do besouro se partiram em três pedaços aproximadamente iguais, divididos exatamente pelas ranhuras do sapato.

Após o rompimento de suas costas, era chegada a vez dos seus órgãos internos. Devido à relativa uniformidade do contato de sua barriga com o chão, o inseto se mostrava uma plataforma estável para o seu próprio esmagamento pelo sapato. Desta forma, quando as ranhuras do sapato adentraram suas costas, elas agiram como lâminas, que cortavam o seu interior em três pedaços iguais com uma precisão cirúrgica.

Já desfalecendo o inseto percebeu uma terceira ranhura, que se aproximava de sua mandíbula. Com seu corpo já fatiado, o besouro experimentou então a quebra de sua mandíbula pela terceira ranhura, o que impossibilitava agora até mesmo que ele desferisse um insulto final contra seu atacante.

Assim que Ele percebeu que o seu pé estava firmemente posto no chão e que o besouro agora se encontrava espalhado por uma área relativamente vasta, fez ele o último ato daquela sinfonia composta pelos sons do esmagamento e aniquilamento daquela forma de vida. Girou os seus sapatos, como se estivesse girando uma chave, selando o destino do inseto.

A última visão do besouro foi uma luz forte, que era nada mais do que a luz normal, mas o tempo que seus olhos haviam passado embaixo do sapato acabou tornando-os mais sensíveis. A luz só não o cegava graças a uma pequena película protetora que havia se formado sobre seus olhos, que também explicava a coloração levemente amarelada que sua visão estava tendo. Só entendeu que sua cabeça estava mergulhada em suas próprias vísceras no exato momento em que morreu. Nunca entendeu, porém, que a culpa de sua morte era na verdade de sua própria espécie, por ter dado início ao poder divino que o estraçalhou.