quinta-feira, setembro 09, 2004

Serás o Sexto

Quinta-feria um tanto agradável e mais do que válida.

Sendo ou não sinal de bom aluno, estou começando a fazer isso.Na aula, estou começando a pegar uma mania que fará mamãe ainda mais orgulhosa. Estou anotando quase toda a matéria nos próprios códigos. Sei que isso poderia vir a ser considerado tecnicamente como cola, mas mamãe ainda assim insiste ser esse um dos sinais do bom aluno. Prova de Constitucional um tanto "entregue", mas se o professor quiser poderá acabar com toda a sala apenas na interpretação.
Ah, as maravilhas das ciências humanas !

Depois de pagar o condomínio que teoricamente era para ser pago segunda-feira, vim para casa e aqui fiquei, de molho. Mas devo confessar que foi um molho agradabilíssimo, com várias coisas dando certo ao longo do dia. O dia inteiro regado a Beethoven, Vivaldi e Mozart. Este último, embora nunca tenha sido um dos meus mais admirados, passou a sê-lo depois de Amadeus. Neste momento até estou escutando seu Réquiem, no filme, a "missa para os mortos". Excelente.

Dois parágrafos. Embora confesse que quisesse escrever mais sobre o dia, devo aqui parar já que o atrativo desse blog é minha família, não minha vidinha patética.

Pois bem senhores, aqui estamos com a continuação da vida de meu avô, o Homem dos Três L, um poeta varginhense, um homem de inclinações autoritárias, um intelectual de tempos botocudos, um aviador que quase mata o próprio irmão, o idealizador do aeroporto de Varginha, nosso conhecido e amado Seu Lyca, Lecticio Luiz Lycarião !

Não vou gastar mais tempo tentando lembrar-lhes nosso último capítulo. Afinal, ele está logo abaixo com seu sabor e prolixidade originais. Aqui agora irei retratar minhas impressões particulares sobre esse incrível personagem, a maneira como o conheci, e com ele convivi, as circunstâncias de sua morte, as fotos que dele vi e que me impressionaram. Resumindo melhor, nesse post teremos a parte intelectual desse voluntário do Chaco.

Quando penso no vô Lyca, duas coisas me vêm à cabeça: Aviões e Livros. O espaço que mais exatamente poderia traduzí-lo seria exatamente a biblioteca onde também ficava o seu escritório em sua casa. Ressalte-se ser essa biblioteca parte do passado, devido a reformas feitas em sua casa, após sua morte. Essa biblioteca tinha livros por todas as paredes, deixando livre apenas um vão para a janela, e um espaço próximo à porta, onde ficava um armário feito de madeira e vidro, de portas e prateleiras transparentes, que guardava o objeto de desejo de todos os netos quando crianças. Apenas esses dois espaços não eram ocupados pela carga cultural de meu avô.

O objeto de desejo supracitado era a coleção de aeromodelos que foram feitos por ele e por seus próprios filhos. Nunca vi aeromodelos tão perfeitos, bem cuidados e místicos. Em todos os 20 anos de minha vida, só me lembro de ter tocado neles uma única vez. E essa foi também a única vez que vi aquele armário, com portas e prateleiras de vidro, aberto. A chave ficava ao lado, mas ninguém ousava tocar nela. Eram ao menos 5 prateleiras, cada uma devendo conter pelo menos 20 aeromodelos. Todos com um acabamento absolutamente fantástico, e embelezados não só apenas pela mística familiar, mas também pelo peculiar pó das relíquias. Aquilo não era pó. Era a proteção que o tempo havia dado àqueles tesouros familiares. Uma espécie de película protetora, a mesma que deve envolver o Santo Sudário ou ossos de quaisquer santos.

Realmente, quando penso retidamente naquele pó, ele estava de tal maneira já agregado aos aeromodelos que parecia fazer parte do verniz dos mesmos. E, davam a eles uma aparência de uma robustez tal, que mesmo que o plástico se quebrasse, o pó os manteria inteiros. Um exoesqueleto realmente. Sim, a memória de Seu Lyca é melhor representada pelas coisas do mesmo. Meu próprio pai, a não muito, na verdade nessas últimas férias, disse-me quando estava remexendo nas coisas do velho Lyca: "É incrível como as coisas do papai ainda mantêm o cheiro dele."
Quando meu pai fez essa afirmação o velho já havia falecido há 11 anos.

Irei lhes contar agora como foi minha convivência com esse admirável homem. Insignifcante. Se existe uma palavra para definir o contato entre duas pessoas, essa seria perfeita para mostrar qual foi minha convivência com esse meu incrível avô. Muito raro é eu ter qualquer pesar quanto ao meu não conhecimento ou falta de contato com familiares, mas esse é um dos contatos que eu mais gostaria de ter tido. Afinal, ele era um poço de cultura e histórias. Continha não apenas o conteúdo de algumas bibliotecas, mas também o de algumas das maiores experiências possíveis para um ser humano.

Digo-lhes no entanto, que tal falta de contato não foi por culpa de nenhum dos dois. Infelizmente as circunstâncias ditaram tal distância. Não consigo me lembrar dele em um estado de saúde bom. Para falar a verdade, não consigo imaginar ele fora do estado de saúde no qual sempre o vi. Sempre saudável, não parecia um velho doente ou qualquer coisa parecida, mas um homem claramente envelhecido. Falava muito pouco, tendo não raro dificuldade de articular suas frases. Para ele deve ter sido um grande desgosto, dado o grande orador que já havia sido. Sempre estava com sua bengala, e sempre movendo-se extremamente devagar. Porém, nunca parecia que estava com os dias contados.

Aproveitando, para exemplifcar esse seu peculiar estado de saúde, nada melhor do que falar exatamente sobre o dia em que acabaram seus dias. Uma coisa que todos na família concordam é que sua morte foi uma morte no mínimo invejável, parecendo até mesmo que ele havia se preparado para ela, tendo no seu último dia de vida um dia de esplendor e deleite, uma perfeita despedida da vida e de todos aqueles que ele amava.

Não sei quando ao certo, mas sei que perto do dia das mães de 1993 meu avô teve publicada em um jornal varginhense uma poesia de sua autoria, dedicada à sua mãe. Em uma das partes da poesia, ele dizia que logo a ela iria se juntar. Não sei exatamente quanto tempo depois, mas acho que duas semanas depois, ele cumpriu sua promessa.

Devo dizer que o dia da morte de meu avô foi sem dúvida o dia no qual mais tive contato com ele, mesmo tendo sido esse contato quase nulo. Mas lembro perfeitamente de tudo que foi feito nesse dia. Nenhum dia chegou sequer perto da incrível comunhão familiar que neste dia foi alcançada no seio da família Lycarião.

Todos os filhos do velho Lyca moravam em cidades diferentes, mas, nesse dia, mesmo não sendo feriado ou qualquer outra boa oportunidade, todos os filhos do patriarca lá estavam. E quase todos haviam trazido a família inteira. Dito isso, o velho nesse dia acordou cedo, como sempre fazia, ali pelas 8 horas, e teve um café-da-manhã que contou com a presença de toda a família -devo dizer que qualquer refeição que contava com toda a família nessa época era um evento, tínhamos até mesmo 2 mesas, uma para os adultos e outra para as crianças- e, logo depois dessa monumental refeição, foi exatamente passar a manhã inteira naquele lugar que era sua maior paixão. Sim. Foi voar. Mesmo tendo aproximadamente 80 anos, ficou a manhã inteira voando com seus filhos, já que todos eram portadores de brevê. Lembro-me ainda, perfeita e nitidamente, de uma foto dele diante do avião no qual voou nesse dia.

Logo depois de despedir-se dos céus, foi ele despedir-se da natureza. Exatamente ao lado do aeroporto, era a fazenda de meu pai. Que ele havia herdado conjuntamente com a minha mãe, quando meu vô Jair havia falecido. Minha família até mesmo nisso conseguia estar unida. Mas continuando, depois de todos voarem todos foram à fazenda de papai. O velho Lyca no passado também havia sido fazendeiro, e lá ele foi relembrar outra parte de sua vida crepuscular. Lembro-me de um grande churrasco, com toda a família, numa churrasqueira que era quase uma praça, ao lado de um açude em nossa fazenda. Foi um belo churrasco, e toda a família se divertiu. Mas, o velho Lyca não ficou confinado ao churrasco. Realmente, esta que agora virá é uma das minhas memórias mais incrivelmente nítidas.

Despedindo-se daquela que um dia havia sido sua profissão, o velho Lyca foi na maternidade de porcos que nós tínhamos na fazenda. Lembro-me que papai mostrou-lhe toda a fazenda, mas lá uma coisa destacou-se especialmente. Papai ajudou seu Lyca a cortar as orelhas de um leitão que havia acabado de nascer. Isso foi feito com uma tesoura cirúrgica que, apenas agora, nesse exato momento, percebi o porquê de meu pai ter até mesmo um certo luxo com ela. Essa tesoura está aqui, agora, ao meu lado, e só agora percebi ser ela uma das coadjuvantes dessa minha bela memória. Meu avô, vejo-o agora nessa tesoura.

Mas esse corte da orelha do leitão foi especialmente marcante não pelo procedimento em si, mas sim pelo contraste presente. Ali estava, o meu avô, que em poucas horas haveria de morrer, segurando um ser que há poucas horas havia nascido. A pele rósea e macia do pequeno leitão em contato com a pele ressecada e embrutecida de meu envelhecido avô. Aquele que logo seria nada, segurando aquele que há pouco, nada era. No momento esse contraste de velho e novo já havia me marcado. Mas, horas mais tarde o contraste entre o feto e o cadáver havia se tornado indelével.

A família se retirou da fazendo aproximadamente às seis horas da tarde, no cair da noite, se bem me lembro. E aí começa a despedida do Velho Lyca de sua família, exclusivamente. Como sempre era feito, todos se reuniram na sala de televisão bem no fundo da casa. No fundo da sala, duas cadeiras, tronos dispostos lado a lado, onde sentava a realeza. Seu Lyca sentava lado a lado com Dona Wanda, ambos desfrutando de sua família. Encarnando a corte, estavam os mais velhos sentados pelos vários sofás e cadeiras da sala, conversando entre si e vendo televisão, claro que ocasionalmente também repreendendo uma ou outra criança que estava sendo mais barulhenta no momento. Os adultos meio que cercavam as crianças, estando ambos do meio para o fim da sala, os adultos juntos às paredes e as crianças brincando no chão, como plebeus que eram. Na frente da sala, em completa comunhão com a televisão, estavam os adolescentes, verdadeiros representantes de uma nova geração que divorciava-se das tradições. Aproximadamente duas horas e meia assim se passaram.

Depois, Dona Wanda foi servir o jantar, servido na própria cozinha, já que os que iriam tomar tal refeição naquele momento eram de número reduzido, apenas uns quatro iriam tomá-la naquele momento. Seu Lyca estava entre estes. Assim que estava pronta a refeição, ele tomou-a, e logo depois, falou que não estava se sentindo muito bem e foi se deitar. Deitou-se e faleceu. Meu pai ainda tentou fazer algum tipo de massagem cardíaca nele, mas sua mãe o esperava. Após despedir-se de tudo que havia marcado a sua vida, juntou-se àquela que a vida lhe deu.

Acho que jamais conseguirei pensar numa melhor maneira de morrer. Após uma vida intensa, conturbada, batalhada e multifacetada, o Velho Lyca ainda teve a bênção de morrer de uma maneira pacata e simples. Uma vida incrível, uma morte sublime. Tal foi o memorável destino desta lenda da família.

Caros leitores, ficamos por aqui hoje. Mas, sinto-me compelido a ainda dar alguns detalhes e curiosidades da vida deste magnífico homem. Fiquem tranqüilos, apresentarei-lhes todas essas nuances, diluindo-as nos posts seguintes.

Desculpem-me pelo imenso post.



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